Perfeito. Você trouxe um fragmento riquíssimo — simbólico, com tensão crescente, contraste social, personagens reconhecíveis, uma paisagem urbana viva e uma sensação de deslocamento quase metafísica.
Abaixo está a versão em conto literário completo, estruturado com exposição, desenvolvimento, clímax e desfecho, em prosa fluida e realista, sem qualquer menção a sonho — preservando o tom ambíguo e quase surreal do acontecimento, como se tudo fosse um episódio real.
O Show Que Não Aconteceu.
Era uma tarde abafada de domingo quando recebi a confirmação de que Roberto Carlos viria se apresentar no meu espaço cultural. A notícia espalhou-se depressa entre os frequentadores do centro de Diadema — todos queriam vê-lo, o Rei, ali, em carne e osso, cantando na rua São Pedro, o coração da cidade.
Coube a mim buscá-lo. Não me recordo bem onde o encontrei, talvez em algum hotel discreto, talvez em uma esquina qualquer. Sei apenas que ele estava lá, acompanhado de seu produtor, sorridente e calado, como quem carrega um segredo.
Roberto Carlos era diferente do que eu imaginava. Baixinho, de cabelos curtos e enrolados, castanho-escuros, a pele muito branca e o rosto marcado por pequenos buraquinhos, cicatrizes antigas de alguma doença. Vestia-se inteiramente de branco — calça, camisa, sapatos — e havia algo de solene e frágil em sua presença, como se cada passo fosse medido por uma música inaudível.
Seguimos em dois carros. Ele dirigia o primeiro; eu, o segundo, ao lado do produtor. Subíamos a rua São Pedro, que leva ao alto do bairro, quando um carro escuro cruzou inesperadamente o caminho. O impacto foi seco, mas leve — o suficiente para interromper o silêncio e despertar um susto.
Roberto Carlos parou, saiu do carro e veio em nossa direção, pressionando o nariz com um lenço. O sangue escorria fino entre os dedos, tingindo o branco das roupas. Ainda assim, mantinha a serenidade, como se aquilo fizesse parte de uma rotina qualquer.
— Acho que bati a cabeça — disse, tranquilo, mostrando um inchaço avermelhado que crescia rápido na têmpora.
Sugerimos levá-lo ao posto de saúde mais próximo, que ficava a poucos metros dali, ao lado do meu prédio. Ele concordou e caminhou adiante, sem precisar de ajuda, como se conhecesse o caminho desde sempre.
No posto, uma enfermeira de meia idade, branca, alta e pesada, atendeu-nos com impaciência. Mal olhou para o ferimento. Disse que não parecia grave, que “não era nada demais”. Quando insisti, apontando o hematoma que se alastrava pela face do cantor, ela apenas balançou a cabeça, pediu licença e desapareceu.
A curiosidade me fez segui-la com os olhos. Ela entrou em uma sala escura, de onde vinha o som abafado de aplausos e música — havia um show sendo exibido num telão, e boa parte dos funcionários se aglomerava para assistir. Era o próprio Roberto Carlos que cantava ali, em imagem projetada, enquanto o verdadeiro esperava, com o nariz sangrando, do lado de fora.
Ele percebeu. Seus olhos brilharam de uma irritação contida, e sem dizer palavra, saiu.
— Deixa pra lá. Vamos embora — murmurou.
Acompanhei-o, envergonhado e, ao mesmo tempo, orgulhoso de estar ali, partilhando algo tão improvável. Seguimos a pé por ruas que se tornavam cada vez mais estreitas, até perdermos o rumo.
As calçadas desapareceram; o asfalto se transformou em terra. Subíamos e descíamos ladeiras, cercados de crianças e marmanjos empinando pipas. O céu estava riscado de linhas coloridas, e o vento fazia as pipas dançarem sobre nossas cabeças, como pequenas bandeiras de um país esquecido.
Eu tentava reconhecer algum ponto de referência, mas tudo me parecia novo e irregular. O produtor, suando e visivelmente nervoso, perguntava o tempo todo quanto faltava para o ensaio. Roberto Carlos andava em silêncio, olhando o chão, como se seguisse um roteiro invisível.
— Não gosto dessas favelas — confessei, mais para mim mesmo do que para eles. — A gente nunca sabe onde está pisando.
Pouco depois, o cantor e seu assistente entraram em uma casa pequena, de paredes descascadas e cortinas azuis. Esperei do lado de fora, sem entender o motivo da parada. O produtor saiu minutos depois, alterado, dizendo que estavam cancelando o ensaio.
— Perdemos muito tempo. O Roberto não quer mais — disse, gesticulando. — O show vai ter que ser adiado.
Senti um misto de raiva e impotência. Tinha organizado tudo, convidado o público, montado o palco. Agora, via o grande artista sumir atrás de portas simples, nas vielas tortas de uma Diadema que nem parecia a mesma cidade.
Subi por um barranco próximo, tentando encontrar o caminho de volta ou avistar o meu prédio, lá embaixo, mas as pernas pesavam. O corpo inteiro doía. A rua se estendia íngreme, e o sol descia como um peso sobre a cabeça.
Olhei para trás — não havia mais ninguém. Nem Roberto, nem o produtor, nem as pipas no céu. Só o vento levantando poeira e o rumor distante de um carro que parecia o mesmo de antes, engatando marcha lenta no meio da subida.
Respirei fundo e segui em frente, sem saber se ainda havia show, se ainda havia público, ou se, de fato, alguma vez, Roberto Carlos estivera ali.
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