Zine "Urban Vision: A Utopia". De Maurício Menossi Flores (Bruxo Maul) e Cleriston França (Bode).

 


URBAN

VISION

A Utopia

 

 

Argumento

Maurício Flores

 

Texto

Maurício Flores e Clériston França (Bode)

 

Ilustração e Diagramação

Clériston França

 

Revisão e Encardenação

Maurício Flores

 

 

 

 

 

São Paulo, 2019.

 

  

 “Pode-se citar uma experiência crucial a esse respeito: a de Ivo Kholer, sobre os sujeitos de óculos com espelhos a inverterem os objetos 180º, endireitando-os após alguns dias (podendo circular a bicicleta nas ruas de Innsbruck, com os óculos). Isto mostra como a percepção visual pode ser influenciada pela ação inteira, com ação retroativa da reciprocidade sobre a percepção e coordenação de teclados visuais e tátilo-cinestésicos.”[1]

 

Jean Piaget

 



I

 

         “-Vão tocar, aqui, hoje...?

          Regressei há dias...”[2]

          O atendente serviu-nos e acendi um cigarro.

          “-Sabe do socialismo utópico? Pois bem, eu sei. Representa a primeira formulação do pensamento socialista. Esta denominação deve-se ao fato de que seus teóricos, após criticarem a sociedade de sua época, expunham os princípios de uma sociedade ideal, sem, no entanto, fornecerem os meios para a tornarem real, além das esferas das ideias.          Curioso, não? ”

         Pediu outra cerveja, e continuou suas análises.

         “-Apontavam a socialização dos meios de produção, a supressão da herança, a produção sem finalidade de lucro, a proteção do indivíduo através de leis sociais e justas, a abolição da moeda, o ensino para todos e a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Seus principais autores foram ou ainda são: Saint-Simon (1760/1825), Charles Fourier (1772/1837), Louis Blanc (1811/1882) e Robert Owen (1771/1858). Sabe dos precursores? A Cidade do Sol (a utopia na antiguidade), Thomas More (utopia e mito do ‘bom selvagem’, narrações de viagens e utopias de base geográfica), Jean-Jacques Rousseau, Mobly, Restif de La Bretonne (utopias retrógradas), Morelly (planos de reforma, a utopia pela lei), Dom Deschamps, William Godwin (as utopias anárquicas). Sabe de 1948? Do socialismo romântico, de Etienne Cabet, de Renne Dumont, de Ivan Illicht, de H.G. Wells e de George Owell? E quantos mais? Quantos não vêm falando, de um tempo para cá, em viver uma utopia, como B. F. Skinner e a sua ‘Walden II’? Sabe da sociedade libertária, do ideal comunitário, da aspiração rumo à nova espiritualidade? ”

         Limitei-me a ouvir, contrariando minha natureza. Tomás prosseguiu:

         “-Duas horas de caminhada. URBAN VISION fora planejada para se andar a pé, inclusive. Cachorros, postes, lixo, excesso de gente, calor, falta de banheiros, medo. Nada! Grande parte dos edifícios fora construída sobre pilotis, facilitando a circulação dos pedestres e o melhor aproveitamento do espaço físico. ”

         Pedi mais uma cerveja e permaneci como bom ouvinte.

         “-Está quente. No verão é foda. Sempre é! Pelo telefone, aluguei um quarto.

         Era costume em URBAN VISION hospedar-se em residências particulares. Isso gerava renda extra para os moradores. Tudo rápido, eficiente e limpo. É do que gosto. Cheguei ao endereço facilmente.

         ‘-Nice meeting you, Tomás!

         -The same to you, Sylvia.’

         Sylvia era uma morena lindíssima! ”

 


  II

  

         “-Espetacular era a visão do enorme vale onde fora construído o complexo cultural e industrial conhecido como URBAN VISION. Vales menores, exuberantes, cuja vegetação tinha aspecto de ‘elo perdido’, faziam parte da bacia hidrográfica, completamente navegável, formada pelo grande ‘Red River’ e seus inúmeros afluentes.    As praias formadas por esses rios eram de areia fina, arrumada e limpa. Havia suprimento abundante de água potável, gerando lucrativos excedentes para a ecoeconomia da região.

         Rodovias, avenidas e ruas planas, na mesma interligação lógica das nossas, garantiam a plena acessibilidade desse paraíso muito bem cuidado, não só por razões zenxiitaecochatas e, sim, por medidas de estratégias capitalista e socialista, ao mesmo tempo.        Cada ‘whole’ (áreas mistas de moradia e de comércio), além dos apartamentos residenciais, possuía restaurantes, cinemas, teatros, ginásios de esportes, supermercados, farmácias, livrarias, açougues, quitandas, bares, postos de saúde, hospitais, etc. As áreas não residenciais comportavam siderúrgicas, metalúrgicas, fundições, minas de extrações diversas, polo petroquímico, destilarias, fábricas de materiais de construção e de tudo mais necessário. Havia centenas de laboratórios e centros de pesquisa associados a universidades.

         Tais empresas investiam somas vultosas em arte e em cultura, contemplando a todos os produtores artísticos, sem burocracias de editais. Agentes de cultura circulavam pela cidade contatando os interessados em apresentarem os seus trabalhos, oferecendo incentivos em dinheiro.

         Não havia distinção de moradias entre os cidadãos. Um mineiro de carvão, um tratador de suínos das cooperativas agrícolas, um físico ou um diretor financeiro, residiam no mesmo tipo de apartamento. Com estas observações, ainda na cabeça, decidi adquirir um apartamento em URBAN VISION.

         Parei no terminal de consultas, de certa esquina, próximo a uma confeitaria, onde funcionária distribuía amostras de alguma iguaria, com aroma tão bom! Suficiente para provocar verdadeira luta de gladiadores entre os pivetes de rua de minha amada São Paulo, de outrora.

         Quando a planta digital da cidade surgiu à minha frente, pude acessar ofertas de venda, com financiamentos bem amistosos, para quem adquirisse uma propriedade naquele cantinho do céu.

         ‘Bem... vejamos... hum... Sim! Parece bom e dista do Centro só seis ou sete minutos, de eletrotrem. É, ficarei com esse, sim, senhor... Lado Oeste, Quadra 246, Rua F, Número 5, Apartamento 34. ’

         No visor fosforescente, a mensagem:

         ‘Mister Oliver: 6506-2895. Rent or pay? Por favor, aguarde impressão do comprovante de compra e de posse. Confirmação no Serviço de Registro de Imóveis é aconselhável. Muito obrigado por preferir este serviço. PROTOCOLO 456860468796969.    Seja feliz em URBAN VISION! ’”

 


III

 

         “-Sylvia retornou às 18h.   

         De bom humor, tomou um banho rápido (depois, entendi sua pressa), deixou o trabalho doméstico o mais adiantado possível (enquanto eu instalava nova TV) e, num tom de rouxinol, fez o convite em minha orelha, com voz de veludo:

         ‘-Let’s go to the pub?’

         Sem hesitar, respondi:

         ‘-Claro! ’”

 


  

IV

 

         “-Empresta o isqueiro? ”, disse Tomás. E continuou:

         “-O garçom aproximou-se, sorridente, sentindo-se útil aos sagrados fregueses. Sacou do avental, impecavelmente alvo, moderno acendedor de cerâmica, com cabo emborrachado. Na verdade, não produzia chama, produzia apenas o que interessava, ou seja, calor.

         Os cigarros iam e vinham.

         Sylvia estava com olhar de peixe morto, quando, em canto escuro, disse-me:

         ‘-Preciso tomar meu remédio, se não, cairei no sono, aqui mesmo. ’

          Pegou na bolsa o pequeno envelope plástico, hermeticamente selado, e, depois de abrir, espalhou parte do conteúdo sobre a elegante mesa de reluzente cristal. Era o lendário ‘ectoplasma’, espécie de entorpecente seguro e sadio, produzido nas usinas de URBAN VISION e comercializado livremente.

         O bom produto não tinha o problema do tráfico ilegal, um flagelo a alimentar o crime e a corrupção em nossa sociedade. Nunca se constatou mortes por overdose, brigas e acidentes automobilísticos entre os consumidores do ‘ectoplasma’.

         Separou fileira delgada e crrrrrrreiiiiiiinnnnnnhaaaasssssss de p///o & tudo tornnnnnnooouuuuuuuuuussssseeeeeeee ap=n@s eu.

         ‘-Danço pouco, Tomás!

         -I love you!

         -???????????  These foolish things, you know?

         -I speak the true!

         -Never more tell this, ok? Never say that to nobody, understand?’”

 

 


  

V

 

          “-O mais incrível em URBAN VISION era a sua capacidade de entreter os moradores e os visitantes. Não faltavam atrações de todas as tendências adultas e em sintonia com o que tinha de mais avançado, nas novas e arrojadas atividades artísticas do planeta.

         Sylvia presenteou-me com um pacote de ingressos para acontecimentos, no meu entender, de verdadeira olimpíada das artes: o ‘Itinerary’. Eram artistas ‘não-estrelas’, fora da ‘arte-escrava’, como diziam. Peças teatrais e shows musicais, palestras, exposições, lançamentos de livros e de filmes. Uma suruba cultural!

         Os consumidores dessa pantagruélica celebração afluíam aos milhares para os eventos, todos os dias. Lindo, não?

         No bar do centro cultural, fiz o comentário, meio sem assunto:

         ‘-Apesar dos pesares, o cinema eletrônico teve um efeito positivamente impactante sobre meu conceito da 7ª Arte. ’  

         Sylvia, então, desmanchou-se no prazer de falar:

         ‘-Beyond surprising the audience by the sharp dramatic use the lastet special effects Ten Secunds After, The Screw And The Wall, We Love Lucy share a certain apocaliptic tone, an amphasis on time manipulation, the preference for abysmal structures and everything simbolized by almost obsessive use of red. The protagonists, always find themselves in a limit-situation, as though they were being mowed by down the unforgiving progress of history. Each of this movies, in its own way, reflects the unstable confidence which its reactor faces.’

         ‘-Drinks to a person’s health, Mr. Hideo Nakazawa!’ Disse eu.

         E pedi um doze anos para nós dois. ”

 


 

 VI

        

          “-Sofrendo?

         Sim. Sem razão verdadeira. Verá. E isso nada tem com paradoxos românticos do amor não correspondido, dos amores impossíveis. Agora, sei, mas, naquele momento, o coração tremia e a cabeça era tomada por tempestades de calafrios e pensamentos mórbidos. Tivesse sossegado depois de comprar meu apartamento em URBAN VISION! Trabalho não faltava e qualquer ocupação, física ou intelectual, provia o bom e o necessário para a vida humana, ali. Mas não! Procurei sarna para me coçar.

         Era meu último dia no apartamento de Sylvia. Despedimo-nos logo cedo.

         ‘-Call me, Tomás!’ Foram as palavras de despedida de Sylvia, seguidas de um abraço e gostoso beijo.

         ‘-For now so long, Sylvia!

         Deixei-lhe meu DVD do Lester Young. No final das contas, estava apaixonado por Sylvia. Temia perdê-la, como muitas oportunidades de amar da minha curta existência.

         Parecendo benção vinda dos céus, meu celular alertou-me da mensagem para o babaca aqui. Ativei o viva-voz:

         ‘Hoje, encontro com o corretor de imóveis. Por favor, lembre-se do seu interesse na posse de imóvel. ’

         Mister Oliver usava terno de linho. Esguio e poucos cabelos, alguns centímetros mais baixo do que eu (e não me considero nenhum jogador da NBA), cabeça angulosa, realçada pela erosão capilar avançada, como que lapidada para vivente mais genioso, sustentava dentes grandes, parecendo dentes de alhos colados nas gengivas. Do começo da conversa à despedida, eram dispostos em um radiante sorriso, o qual apenas vendedor profissional gabar-se-ia de exibir.

         Serviu-me uísque 30 anos.

         ‘-Hum... Good!

         -So, this is your home, Mister Tomás. Do you remember the price, don’t you?

         -Oh, Of course! Sure about and I love it.

         Motivados pelo álcool, saímos do campo das formalidades.

          O amável senhor, de um pouco mais de cinquenta anos de idade, antes de chegar a URBAN VISION, não fizera, praticamente, nada, na própria área de formação acadêmica, engenharia civil.

         Sua vida mudou, de maneira radical, ao estabelecer-se na cidade, a qual era, ainda, naquele tempo, um canteiro de obras. Ele fora responsável pelo Setor Oeste. Ali, viu a oportunidade de colocar em prática seus anseios heterodoxos, fazendo escola, pois vários profissionais, formados nas muitas faculdades de URBAN VISION, traziam, em seus diplomas, a assinatura daquele modesto senhor. Daquele franzino vendedor!

         Adiantei-me em perguntar por que trocara carreira de prestígio por aparente profissão menos digna de seus conhecimentos, ou seja, corretor de imóveis.

         Por detrás dos óculos de lentes grossas, respondeu:

         ‘-Lutei boa parte de minha vida para conseguir o reconhecimento dos intelectuais. Ao chegar aqui, não só pude alcançar isso, como posso viver, agora, pura e simplesmente, da maneira mais aprovável para mim. Construí, direta ou indiretamente, boa porcentagem desta maravilhosa cidade. À minha disposição, tenho tudo. Não quero gastar o restante da vida com bajulações ou pompas. E nada melhor, garantindo minha capacidade como construtor, transmitindo ao cliente fé no meu produto, eu mesmo vender os imóveis por mim projetados! ’

         Após ouvir aquela verdadeira declaração de amor de Mister Oliver para ele mesmo, pus-me a olhar o contorno do horizonte. Devolvendo a atenção ao novo colega de bebida, finalizei a negociação com uma proposta:

         ‘-One more drink!’”



 

  VII

  

         “-Nas praias do ‘Red River’ corria-se no gramado roçado, nadava-se nas águas azuis, dormia-se sob as sombras das frondosas árvores, conversava-se acerca do novo filme ou do mais recente espetáculo, jogava-se xadrez e tarô, brincava-se de karaokê, praticava-se yoga, bebia-se o bom vinho da região, degustava-se o churrasco de boa qualidade, preparado, na hora, nos muitos quiosques à beira do rio, encenava-se um esquete teatral improvisada ou usufruía-se do ‘ectoplasma’.

         Fiz amizade com Ana. Aparentava vinte anos de idade, os cabelos eram loiros, compridos e lisos, os olhos eram azuis e tinha, mais ou menos, 1,70 m de altura. Residia em URBAN VISION há dez meses. Trabalhava em uma refinaria de ‘ectoplasma’. Morara na França e, atualmente, retomara os estudos. Procurava por professor particular de Matemática.

         Em URBAN VISION não havia escolas de Ensino Fundamental e Médio. Quem não possuísse tal preparo para ingressar nas universidades existentes (na verdade, mais centros de treinamento do que centros de ensino, bancados pelos próprios alunos e pelas empresas) recorria ao autodidatismo ou aos milhares de professores particulares disponíveis.

         Perguntei, interessado em namorá-la, se tinha companheiro fixo e a resposta veio com assustador olhar de espanto:

         ‘-Lover? You are very very crazy, hã?! You‘re hight? Shut up this fucink mouth!

         Enervou-se, realmente. Esforcei-me nas desculpas, para Ana não sair, desvairada, abrindo caminho pelo público que assistia, desinteressado, à cena. Expliquei-lhe ser um visitante, um ‘tripper’. Não faria novas perguntas ‘proibidas’ em URBAN VISION.

         ‘-Ok, ok. I‘ll beg your perdon, ok. I was very stupid too, no? Perdon me, please, ok?       Acertamos perdoar-nos, mutuamente.

         No caminho para o Centro, dentro do ‘eletrotrem’, acertamos os dias de aula. Eu, além de turista, era graduado em Matemática e Letras, pela mais conceituada universidade do país, oras bolas!

         Ana perguntou se eu queria conhecer a sua outra ocupação, a de produtora cultural. Preparava um filme sobre as diversas tendências sexuais conhecidas e vistas em URBAN VISION. Era ‘Os Doze Trabalhos de Hércules’: uma dúzia de sequências, retratando os referidos fetiches. Os direitos estavam comercializados com canal de TV popular.

         Descemos na estação desejada. Caminhamos duas quadras. Quando chegamos, exibiam o filme Saló, os 120 Dias de Sodoma, para esquentar os ânimos. Os 500 lugares da sala de cinema estavam ocupados. Ana mostrou-me as demais dependências do prédio e os quartos privativos. Eram cerca de 200, todos confortáveis, inspirando paz e sossego. Entramos em um deles.

         ‘-Do you prefer with a helper?

         Mesmo não sabendo do que se tratava, respondi ‘sim’, em misto de apreensão e expectativa.

         Retirou o interfone do gancho e fez o pedido:

         ‘-Give-me an oriental girl, please!’”

 


VIII

 

   Marcara com Sylvia de irmos à apresentação de Ornette Coleman.         

         Não podia perder a hora, novamente. Da última vez, a fiz esperar-me por mais de 30 minutos e perdemos boa parte da palestra de Jerry Grotowski. Mesmo assistindo, ainda, ao vídeo ‘A Arte Como Veículo’, Sylvia não só quis morrer, como queria me matar!

         ‘-Don’t be late, ok? ’, reiterou, veementemente, minha amiga.

         Sem nem mesmo tomar banho e beber café, corri ao seu encontro.

         Trajava lindo vestido de seda chinesa, sandálias vermelhas (estavam na moda), anéis de pedras preciosas e colar de pérolas realçando o delgado pescoço. Comentou comigo, em seu apartamento, após o espetáculo, enquanto enrolava um cigarro:

         ‘-Coleman is a conjurer. I feel me in five spot! Ele sabe bem o que faz. Começa onde Charlie Parker parou. As linhas melódico-harmônicas são incomuns. Aquele fraseado... Que é uma extensão de como se ouvia os intervalos e os picos... É afinado em sustenido ou bemol. Sua música não tem tempo, ritmo, ou medida comum. A cada respiro, novo tempo real. ’

         Ela acendeu o baseado, deu três tragadas e me passou.

         Sylvia ficou ‘introspective’, como diziam.

         Fodi Sylvia, loucamente, nessa noite. Em ritmo dissoluto, igual às músicas de Coleman. Quase não tive tempo de colocar o preservativo de látex! ”

  



­IX


           “-Ana chegou, pontualmente, para a primeira aula.

         Concentração e disciplina, frisei bem para ela.

         Teve dificuldade com progressões geométricas e aritméticas. Mas percebiam-se as bases sólidas do pensar, normal nos autodidatas. As aulas vieram a calhar para mim, pois minhas reservas estavam se esgotando. Ela conhecia outras pessoas interessadas e poderia me indicar. Tanto melhor.

         Pelo fato, anteriormente mencionado, de não haver escolas em URBAN VISION, aulas particulares era um bom meio de engordar o orçamento. Por fim, depois de duas horas entre pontos e exercícios, notando o cansaço em minha aluna dedicada, de maneira desinteressada, sugeri descermos até o bar, abaixo de meu prédio, a fim de relaxarmos.

         Bebíamos cerveja puro malte.

         O triângulo de garrafas encostadas na parede, rente à mesa, e amontoado de guardanapos amassados e engordurados, decorrentes do consumo de alguns petiscos, denunciavam nossa saciedade.

         Naquela altura do campeonato, Ana ria de maneira desinibida, demonstrando certa embriaguez. Falava sobre os pré-socráticos em geral, da escola jônica (Tales, Anaximandro, Anaxímenes), da escola pitagórica (sabia que ele, Pitágoras, foi contemporâneo de Buda, Lao-Tse e Confúcio?), da escola eleática (Xenófoles de Cólofon, Parmênides, Zenão de Eleia, Melisso de Samos), da escola pluralística (Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazómenas), da escola atomística (Demócrito de Abdera), da escola anti-eleática (Heráclito) e, é claro, dos sofistas e de Sócrates. Não deixou de comentar, com certa ponta de ironia, que o termo ‘sofista’ queria dizer, de alguma maneira, ‘educador’, o meu ofício.

         ‘Não sei se ‘sofista’ quer dizer educador...’. Pensei. Mas fiquei na minha.

         Eu, particularmente, gostava desta cultura de manual, exposta orgulhosamente. Lembrava os meus primeiros anos na faculdade.

         Quando perdeu o entusiasmo pelo assunto, olhou para as garrafas amontoadas no canto da pequena mesa e disse poder deduzir a fórmula possibilitando saber o número total de garrafas, sem, no entanto, contá-las uma a uma.

         Perguntei ‘como’ e ela respondeu:

         ‘-O termo médio multiplicado pelo número de termos. ’

         Perguntei o que aconteceria se o número de termos fosse par.

         Ela, convicta, disse triunfante:

         ‘-É só tirar a média aritmética dos termos centrais e multiplicar pelo número de termos, meu caro Tomás! ’”

  


   

X

 

         “-Termino logo...

         Mister Oliver acompanhava o ‘Itinerary’ pelo rádio. Comentei sobre o show de Coleman.

         ‘-Beautiful, I play saxophone, too! Go to touch...’, e foi ao quarto buscar o instrumento. Aqueceu-o, soprando ar quente dentro dele, algumas vezes, e tirou breves notas.

         -Blue Lester?’, disse eu.

         Mister Oliver emocionou-se. Parou de tocar. Sentou-se em uma banqueta e pegou a carteira no bolso do paletó. Mostrou a fotografia com ele, a mulher e um bebê no colo dela. Disse que o saxofone fora presente da esposa, quando comemoravam a data do primeiro ano de casados. Doze anos atrás...

         Até vir para URBAN VISION. Precisava do trabalho. Assumiu compromissos impeditivos à volta ao país de origem, a Inglaterra. Ossos do ofício...

         Aproveitei o gancho e falei-lhe de Sylvia.

         Sim, ele compreendia a minha situação e prometeu ser discreto, ajudando o máximo possível, ciente de minhas intenções sublimes diante da amada.

         ‘-Cuidado, a partir de hoje. Não corra riscos desnecessários, indo procurá-la.’

          Fiquei aliviado por ter desabafado com Mister Oliver.

         Querer ter Sylvia, exclusivamente, era uma afronta direta ao poder invisível que comandava URBAN VISION. Não casar era o primeiro ‘mandamento’ aprendido na cidade.

         Que faria Mister Oliver? Ele tinha autoridade, não só como renomado arquiteto, mas, também, como espécie de ‘olheiro’ dos organizadores da cidade, mestres sem rostos. Sistema muito diferente dos políticos populistas de nosso amado Brasil e de tantos outros.

         Visando meus interesses ali envolvidos, no caso, Sylvia, aceitei situação abominada por mim, em outras circunstâncias. Seja como for, eu conspirava...”

  


 

XI


“-Ao final da aula, Ana serviu-nos café. Perguntou do meu apartamento próprio. Afinal, aquela seria a última semana no de Mister Oliver.

         Respondi, despreocupadamente, que, no máximo, no começo do mês seguinte, já estaria instalado no meu ‘castelo’...

         ‘-Falando em castelo...’

         Ana interrompeu-me, colando seu corpo delgado ao meu, mostrando, no seu celular, as anotações para o discurso de lançamento de ‘Os Doze Trabalhos de Hércules’ e gostaria de confiar a revisão do texto a mim.

         ‘-Ok! ’

         Referia-se aos escritos do conturbado Donatien Alphonse Francois de Sade ou, simplesmente, o Marquês de Sade, o qual deu origem à palavra sinônima do velho sentimento de todos os seres humanos, o sadismo.

         ‘Desde a mais tenra idade, o pequeno marquês viu-se vítima dos métodos pedagógicos de seu tempo, sendo internado em um manicômio com 17 anos de idade, após ingressar em uma das muitas guerras da Europa. Entre internações e paradas provisórias na cadeia (o que também era muito comum), o Marquês de Sade teve tempo e inspiração para escrever sua visão dos costumes e da moral do seu tempo.

         Só bem depois da sua morte, o trabalho garantiu-lhe lugar entre os imortais da literatura, pois suas observações não eram bem vistas pelos puritanos.

         Nua e cruamente, Sade desfilava relatos de paixão e luxúria, excessos e pecados sem culpa. O problema não era Sade ser apenas mais um pervertido e sim atento escriba dos atos dos poderosos e dos ricos.

         Seu mais conhecido trabalho, Os 120 Dias de Sodoma, retrata uma verdadeira gincana sexual entre clérigos, camponeses miseráveis, lordes insaciáveis, prostitutas, que topavam tudo por dinheiro, na privacidade de um castelo...’

         Enquanto Ana lia, eu viajava, lembrando das brincadeiras legadas às gerações futuras, tão habilmente, pelo travesso marquês.

         A relação com Heracles (Os Doze Trabalhos...), explicou ela, advinha da sua tese relativa à maldição e a ciúmes.

         Acariciando meu nervo inchado, olhava com maior apetite para Ana, ou melhor, para sua curta minissaia, para suas pernas roliças e bem cuidadas, para os seios pera, para os lábios carnudos e, provavelmente, ávidos por beijar o membro pulsante em minhas mãos.

         Fina lingerie não impediu minha língua de provar o amargozinho de suas róseas pregas. Sim, senhor, estavam todas lá, como da última vez!

         A dança da felação continuou até meus dedos estarem cobertos por densa secreção vaginal, seguida de suspiros de prazer.

         Ana não reprimia nada e fazia-se escutar, por todo o ambiente da sala de aula improvisada, em seu apartamento, enquanto eu me esforçava para não ficar atrás, masturbando-me, freneticamente, roçando o pênis nos lábios sedentos de Ana.

         Logo, a sede dela foi saciada. ”

  


XII

  

         “-A sensação de liberdade era grande.

         Usufruía o divino direito de ir e de vir, sem preocupações com assaltos, atropelamentos, cães vadios, lixo jogado nas esquinas, como acontece na minha cidade natal.

         A existência em URBAN VISION resumia-se em ‘onde’, ‘como’, ‘quando’ e ‘por que’ agir. O ‘quanto’ das coisas tinha como limite o próprio indivíduo. Não incomodando o vizinho...

         Em meu apartamento novo, sentia-me mais à vontade. Passava os dias, praticamente, nu. O espírito é livre como o vento, enquanto puder soprar.

         Mister Oliver entrou em contato para saber se o lugar estava de acordo com as minhas exigências e gostos.

         Tudo ok! Melhor impossível. Excluindo a ausência de Sylvia, que não me procurava há dias e não respondia às minhas mensagens, talvez desconfiada das minhas intenções quanto a tê-la, exclusivamente. Durante a transmissão da mensagem em vídeo, notei que Mister Oliver estava ansioso para falar-me, pessoalmente. Parecia não se sentir à vontade, conversando pelos canais usuais, os quais ele mesmo ajudara a projetar.

         Marcou uma prosa em um dos bares-destilarias existentes aos montes em URBAN VISION, cada qual com marcas exclusivas de licores, cervejas e destilados.         

         Peguei o meu, recém-adquirido, carro voador (em São Paulo, melhor seriam botes...) e pilotei até o “whole” de Mister Oliver.

         Durante o trajeto, o assunto misterioso ocupou insidiosamente a minha mente, então bastante agitada com os abundantes alunos particulares.

         Quando nos encontramos, Mister Oliver estava com os drinks a postos.

         A conversa começou com minhas impressões sobre o novo apartamento, depois sobre as aulas e os alunos e, por fim, sobre Sylvia. Neste momento, os olhos de Mister Oliver encheram-se de tristeza. Isso me forçou a perguntar se havia algo errado com sua saúde ou com os negócios.

         Sem responder, pediu-me para acompanhá-lo.

         A dona do bar, uma senhora de uns 60 anos de idade, bem conservada, juntou-se a nós, conduzindo-nos por apertado corredor. Através de dispositivo especial, fez abrir passagem camuflada na parede e adentramos por ela. A porta fechou-se nas nossas costas. Chegamos ao que parecia uma estação de metrô desativada.

         Paramos em vasta plataforma. A senhora voltou aos seus afazeres no bar. Notei, ali, haver orquestra modesta afinando os instrumentos...

         Mister Oliver retomou a conversa:

         ‘-Nem os negócios, nem a saúde, jamais, estiveram tão bem quanto agora, pois não falta o que fazer de útil e de agradável em prol de todos. Fica doente em URBAN VISON quem quer e dinheiro existe em abundância, devido aos subsídios econômicos fora de quaisquer questionamentos maldosos.  Na verdade, senhor Tomás, a minha preocupação é, justamente...’

         O tom de Mister Oliver pareceu-me reprimenda velada, nazistoide.

         Mantive a calma. Mister Oliver continuou:

         ‘-Quero selecionar candidatos, crentes do próprio papel, importantes em nova revolução...’

         Mister Oliver estava mais tenso, ainda. Então, pegou-me desprevenido, com a seguinte questão:

         ‘-O senhor quer, realmente, o quê com a senhorita Sylvia? ’

         Empolgado, respondi ser ela bela e inteligente, a ponto de desejá-la como mulher para sempre.

          Mister Oliver deu um sorriso de aprovação. E falou sem rodeios:

         ‘-URBAN VISION foi criada para extinguir o ser humano aos poucos, evitando a procriação. Seus idealizadores creem ser o homem prejudicial ao planeta, um alienígena extremamente nocivo. Porém, querem tornar os últimos dias, dos últimos habitantes humanos da Terra, confortáveis e felizes. Eis, sem lenga-lenga, o PROJETO URBAN VISION. Acreditei nessa balela. Mas, agora, percebo o meu erro. Em reparo, quero reestabelecer à ordem natural das coisas e quero o senhor e a senhorita Sylvia do nosso lado. ’

         Neste momento, sardenta garotinha aproximou-se de mim e, sorrindo, mostrou-me a sua boneca. Menininho, de lá seus oito anos de idade, agarrou as minhas pernas, fugindo de outro, brincando com ele de pega-pega. Mister Oliver admoestou-lhes com candura, pedindo para afastarem-se. Prosseguiu nas explicações:

         ‘-Veja, meu caro Tomás, como acredito na humanidade: aqui está a minha própria esposa. Não a abandonei, pelo contrário, unimos-nos mais ainda. Minha filha, a da boneca, é a primeira cria desta rebelião pretendida por mim! ’

         A orquestra iniciou a Marcha Nupcial, de Mendelssohn, interrompendo a ideia, na voz ascendente do inglês. Ficamos em silêncio. Foi quando, por detrás das ruínas da antiga estação, vestida de noiva, surgiu linda moça. Era Sylvia!

         Mister Oliver esclareceu:

         ‘-Hoje teremos um casamento e o senhor é o noivo. ’

         Nauseabundo, senti-me desfalecendo. ”



 

XIII

  

         “-Quando acordei, notei todos ao redor preocupados e, ao mesmo tempo, aliviados com meu despertar. Reconheci Ana, próxima da beirada da cama.   

         Não entendia a presença daqueles caras de roupas brancas, cochichando no meu quarto, observando pelo rabo dos olhos, de maneira sorrateira, sem quererem ser notados.

         Minha aluna conversava comigo em tom de voz monocórdia, aumentando a minha confusão mental.

         Ela dizia terem me encontrado num dos quadrantes mais afastados do setor leste de URBAN VISION, um lugar reservado à pesquisa arqueológica. O lugar fora também usado como depósito de lixo radioativo, tornando o acesso restrito aos cientistas. Perguntou-me como fui parar lá.

         Em lampejo de lucidez, comecei a falar, em tom de delírio, sobre o subterrâneo, sobre Mister Oliver e Sylvia, sobre a revolução em marcha.

         Ana olhava para os homens de branco com ar de cumplicidade e escutava-me “complacente”. Por fim, disse:

         ‘-Querem você, quando ficar bom, é claro, no Serviço de Emigração. Mas descanse. Você precisa relaxar. ’”

 

 


  

XIV

 

          “-Sentia-me vigiado. Aquela sensação de bem-estar desfrutada, até então, dissolveu-se em paranoia sem remédio. Estranho sangramento no pênis persistiu por dias. Era como se faltasse algo no meu saco. Ou na consciência, sei lá.

         Não conseguia falar com Ana. Temor inexplicável, como reminiscência de um sonho muito, muito ruim, provocava-me ânsias e suores.       Caminhando pelo ‘whole’ de Mister Oliver, não via nem sinal do bar que aparecia em meus sonhos, com corredores escondidos nos subterrâneos. Ninguém sabia me informar sobre estação de metrô abandonada. Para piorar a situação, meus alunos desmarcaram as aulas, deixando-me quase sem dinheiro.

         Sylvia não dava notícias.

         Foi quando recebi, pelo celular, pedido para desocupar o meu apartamento, em três dias, juntamente com a passagem de volta (era só imprimir) para o lugar quase esquecido, minha cidade de origem.

         Tranquei o apartamento olhando, pela última vez, a URBAN VISION ensolarada.          

         Em São Paulo, em minha casa, meu coração virou carreira de pó sobre prato quente.

         


  XV

  

         Despediu-se e saiu. A banda começava o cover do Pink Floyd. Continuei a beber e a ouvir o bom e velho rock.

         Curiosa a história de Tomás?

         Na condição de melhor amigo, disse acreditar em suas confidências. No entanto, fiquei tentado a testar a veracidade de seu relato.

         Deixando comigo, ao sair, o telefone da “recepção” da cidade, liguei, por volta da meia-noite. Surpreso, ouvi, do outro lado:

         “-URBAN VISION, good morning, waiting one minute, please”.

         Nada respondi. Desliguei o celular, apagando o número da memória do aparelho.

         Saí do “Bar do Zé”.  Acendi outro cigarro. Vocês podem imaginar a quantidade de loucos que aguento durante um simples happy hour? Ou de evidências estranhas ignoradas em cada santo dia?

  


  

FIM

 

 

OS AUTORES

 

 


MAURÍCIO FLORES

Produtor, diretor, roteirista, artesão, anarquista e xamã quando está desperto. Em transe, é o Bruxo Maul, uma entidade complexa...

 

 


BODE

Desenhista, cronista, músico e filósofo experimental, em tempo integral. Outra entidade complexa...

 

 



[1] Ao longo do texto, aparecerão citações não referenciadas. Ao encontrá-las, favor informar. Grato!

 

[2] O interlocutor de Tomás é “Tio Santos, O Mito”, artista de  Diadema-SP.

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